pós-tudo

Programador Sincero
9 min readMay 21, 2020

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Augusto de Campos — Pós-tudo — 1984. Um poeta concretista incrível. Conheçam!

O carinha médio brasileiro, que trabalha(va) em alguma empresa com roupa social, ar condicionado e cafés (ruins) à disposição está tomando um chá de realidade neste tempo. Esse carinha filho da puta, o liberalzão, o livre-mercadista, o meritocrata, o odiador de gente do Bolsa Família vem tomando no cu com força. Com as demissões recentes, muitos desses moradores de apartamentos com varanda gourmet e condomínio de 1200 a 2000 reais tiveram suas vidas mudadas de uma forma que nunca haviam previsto. E acabaram, através de um choque, percebendo o quanto realmente foram otários.

As empresas, astutas de modo geral, sempre foram mestras em enganar e tirar o melhor dos seus escravos. Usando de expedientes mais sofisticados para motivar esse carinha médio esforçado, otários vinham (e ainda vêm) caindo em discursos como “não estamos trabalhando! estamos mudando o mundo”, “nós respeitamos e ouvimos todas as pessoas”, “aqui você pode fazer o que realmente você nasceu para fazer”, “isso muda o mundo”, “ faça parte da nova (produto foda e inovador)” e o caralho todo. E isso cativou os jovens de todas as idades a darem o seu melhor para efetivamente mudar o mundo como vivemos. Não podemos negar que grandes avanços foram obtidos ao custo de horas-extra VOLUNTÁRIAS feitas por pessoas que deram o melhor que tinham, por amor à causa em que estavam atuando.

E isso começou a foder com tudo. O aumento de engagement dos funcionários usando uma motivação além do estritamente financeiro é pedra fundamental nesta 4a. revolução industrial, onde o valor da pessoa não se mede mais pelo tempo em que ela passa no escritório, mas sim, pelo valor que ela agrega com a sua criatividade, inspiração e esforço. Sem limites de horário ou fronteiras entre o trabalho e o lazer, as empresas conseguiram lucrar ainda mais. Quem pagou por isso? Você, trouxa fodido de classe média! Tem cara andando de carrão e dando rolê top. Quem paga é você. Otário. Você otário acabo caindo no conto do investimento, no conto do esforço, no conto do influencer, no conto do mérito, no conto do livre-mercado, no discurso das “conquistas”, aceitou pagar por tudo (escola, saúde, segurança) e principalmente, aceitou dar mais do que 8 ou 10 horas por dia para outro cara lucrar em cima… do seu suor! E o que você recebeu em troca? Um bônus talvez.

Com o tempo as mina tá tudo cansada, dando a buceta pra qualquer um do aplicativo, ou cuidando de um outro trouxa infantil sem futuro, ou cozinhando à noite pra algum babaca. Nesse outro apê tem outro cara gordo e fudido com o pau na mão vendo um porn. Ali tem um fazendo cara fazendo força na academia, como um bom escravo forte, que compensa o stress com vícios sofisticados, academia e relaxamentos mais caros para compensar o stress. Olha para aquela gostosa do shortinho mas nada muda. Continua com suas fodas mal dadas e fodas não dadas. Aquela gozada bosta de 1 minuto. Ali naquele quarto tem um loirinha tingida fingindo que gozou e uma posterior reclamação no grupo do face. As tramas corporativas nesse outro apê são discutidas na hora da mesa. Em outro canto da cidade tem aquela moça boa que nunca fodeu ninguém e só se fode, passando horas no busão quente, no trânsito insuportável, no calor do apartamento apertado e sustenta cada vez aquele senso do “vou me esforçar para ter sucesso” após rolar a timeline do insta em um celular caro que a endividou ainda mais. Ela tira mais uma foto mas pouca gente dá like, porque afinal, ela é apenas mais uma menina feia esquecida pelo capitalismo da faria lima e das lives de investidores. É vista como um lixo e mesmo sabendo mexer no excel, nunca será a mina que será chamada pra “investir de uma forma diferente para conquistar seus sonhos”. Seus sonhos não são compráveis com dinheiro. Ela observa da janela do busão um outro menino de ouro da faria lima que por acaso, também tá na pegada de investir e se esforçar para conquistar os sonhos. Para ele e para ela, o esforço extremo é a única saída para encontrar um suposto El Dorado que seria uma vida cheia de riquezas, nos barcos, à la influencers de merda, à la meninoney, um primo rico que seja, com uma vadia gostosa ou brother pauzudo que cozinha e trata bem e dá espaço pra uma realização profissional. Ou então, ok, só uma casa com uma geladeira e sem humidade, sem barulho de igreja, sem baile funk, carro com som alto, sem ladeiras, com comércio próximo, com paz.

Com as empresas dos sonhos fechando e demitindo os meritocratas sem dó, as coisas começaram a mudar na cabeça desses inocentes escravos, que até então, estavam reproduzindo um discurso implantado sabe-se lá como. Esse brother aqui, que deu todo o tempo livre pra empresa, deu ideias, se sentiu parte de algo “muito maior” …. simplesmente foi descartado e foi tratado como o que ele sempre foi e nunca soube: funcionário com carteira assinada e nada mais. Nada mais mesmo. Um cpf qualquer, um custo, um filho da puta qualquer. Foi mandado embora por e-mail, por whats, não recebeu recomendação nenhuma dos amigos da empresa e do linkedin. Ninguém ligou pro cara depois da demissão. O cara simplesmente foi esquecido. Sem direitos pagos. O brother teve que atualizar o currículo, teve que se conectar com outras pessoas nas redes, teve que descer do pedestal. Esse pequeno e triste filho da puta sempre ignorou mensagens dos outros e nunca ajudou a indicar ninguém. Foi sarcástico ao entrevistar aquela menina feia e deu risada da menina da periferia que estava buscando seus primeiros estágios em algum escritório. Oras, aquela empresa era um lugar com “gente decente” e uma favelada poderia assustar eventuais clientes. Na merda repentina, sem rescisão (artigo 486 clt — mancada injustificável), com um grande condomínio pra pagar, escola de 2 filhos pra pagar, uma Compass, parcelas de uma porrada de coisa, cartão carregado, dívidas… nosso “amigo” pensa: “porra que governo filho da puta foi esse em que votei? Por causa de uma maldita gripe agora to me fodendo por causa dessa gente da esquerda. Comunistas”.

Com o tempo, o cara acaba se ligando que não tem nada de comunista na doença, não tem nada de amor na empresa, as almejadas promoções não ocorreriam mesmo, que ninguém realmente se importava com ele, que ninguém ligou para ele quando se fodeu, que no fim, tudo o que ele fazia com a grana era só merda. Em um apartamento de 108 metros quadrados, a porra do sol não entrava direito. A janela tinha que ficar fechada porque o vento era insuportável nessa época do ano. Sem a empregada em casa, teve que fazer a própria comida. E teve que lavar o próprio banheiro e a própria louça. No fim, ao lavar a louça, o nosso amigo tacou um prato na parede e se conscientizou de como foi realmente um otário a vida toda. Gritou e assustou todo mundo.

Passou a repensar tudo. Passou a conhecer os filhos, a mulher. Passou a analisar que no fim, todo aquele mundo de ilusões, de desempenho e de corrida pela riqueza não significava nada. O que importava realmente era o agora, o momento presente e nada mais. Gastar 15 horas por dia para ter um futuro melhor não fazia mais sentido, porque como ele viu, a mãe dele morreu do nada, sem futuro, sem poder dizer adeus, sem porra nenhuma, na merda, fodida, do nada. O futuro poderia não mais existir. Carreira? Minha rola. Esforço? Minha rola também. Pau no cu. Jurou pra si mesmo que não iria mais pagar a Mercedes nova de filho da puta nenhum.

Com um pouco de dinheiro que ainda tinha guardado, estruturou os custos. Mudou-se para a casa da mãe. Colocou o apto à venda. Devolveu o carro e pegou um carro intermediário. Tirou os filhos da escola e vai ver o que fazer ano que vem. Ao circular por alguma rede social, notou que alguma pessoa estava pedindo ajuda. Ele se sensibilizou e ajudou. E pela primeira vez na vida sentiu um quentinho inexplicável no coração.

Outro dia saiu com as crianças e a esposa para ver o pôr-do-sol e as estrelas como nunca havia feito. Ele sentiu um quentinho no coração que também nunca havia sentido. Mas este quentinho foi ainda mais forte, porque foi sentido em grupo, ao mesmo tempo. E ele entendeu, finalmente, a lição. E agradeceu a cada segundo por sua vida ter virado tão rapidamente.

As coisas pareceram melhorar do nada. Novas propostas de emprego surgiram e até admitem trabalho remoto. O salário tem sido menor, mas com os custos reduzidos, as propostas ainda são viáveis economicamente. O apartamento foi alugado por um preço menor do que o esperado, mas pelo menos, o condomínio alto estava sendo absorvido pelo locatário.

Alguns dias depois ele estava chorando. Mas era uma por uma causa linda. Ele não conseguiu segurar as lágrimas ao receber um agradecimento após ajudar alguém do twitter que ele nem conhecia. A moça mandou um vídeo da cozinha, onde estava conseguindo fazer um almoço para todo mundo. Ela estava muito feliz. Nosso amigo chorava sem parar. E esse quentinho no coração começou a durar cada vez mais. Inevitável.

As coisas têm sido difíceis para todos. Muitos têm precisado sair de casa para trabalhar e conseguir um sustento. Mas ficou claro para muitos caras da ex-classe média que um suporte financeiro para todos é o único caminho viável para seguirmos vivendo bem em sociedade. Ninguém mais condena o bolsa-família, mas agora, apoia a expansão deste tipo de programa não só durante a pandemia, mas para todo o sempre.

Nesse pós-tudo, vamos ver uma sociedade que se importará cada vez mais sem sentir esse quentinho no coração. Para que comprar um carro de 140 mil, muitas roupas, tomar cerveja trangênica em bares e buscar prazeres transitórios? O que realmente precisamos está bem mais fácil de alcançar. É possível sentir essa coisa boa aproveitando cada dia de sol, cada gota de chuva, cada nuvem que passa, cada estrela que brilha e cada folha de árvore que possamos ver. Nossas relações precisarão ser mais humanas e precisarão ter mais amor, mais companheirismo. Sexo vulgar e barato não faz mais sentido porque o senso de vazio continua quando o tempo juntos acaba. Muita gente tem sofrido com a solidão afetiva, sozinhas e abandonadas. Isso precisará ser revisto. Relações que são sólidas tendem a ser a base para as pessoas sobreviverem as tempos difíceis que ainda virão.

Um trabalho focado só no sustento imediato deverá quebrar essa lógica perversa da sociedade do desempenho e do consumismo de supérfluos que vinham escravizando todo mundo. Sem influencer, sem gente nos dizendo para ser produtivos, sem a necessidade de se diferenciar em alguma rede social, nossa vida se tornará muito mais simples e claro, muito mais profunda. A busca por experiências mais significativas e transformadoras serão mais visíveis neste pós-tudo. Muita gente está descobrindo que não precisa de nada externo para serem felizes. Encontrar esse quentinho no coração está muito mais fácil do que antes, naquele tempo em que tínhamos olhos mas não víamos, tínhamos ouvidos e não ouvíamos e tínhamos anseios e ignorávamos.

Pela consciência de si, cedo ou tarde, muitos iniciarão uma viagem que não tem mais volta.

Ela estava ajudando no grupo de whats do bairro quem precisava fazer compras. Ela como não tinha carro, acabou indo de carona com uma moça e um outro cara do bairro. Fizeram as compras. Entregaram produtos. O moço deixou a outra moça na casa dela e depois deu carona para ela. Ela agradeceu. e desceu do carro. Mas só ela desceu do carro. Seus olhares ficaram. Estiveram. Permaneceram. Foram e continuaram sendo. O Universo era visível através daquele olhar magnifico de imensa beleza e imenso amor. Esse moço sentiu aquele quentinho diferente, que uniu esses corações para sempre. Não havia mais como escapar.

Sem falar nada, simplesmente, pelo olhar, se beijaram. Ela sentiu um quentinho no coração, mas talvez, um calor de milhões de sóis. Infinitos e infinitivos. Verbos ligados. Ficando. Crescendo. Multiplicando. Espalhando amor pelo mundo. Uma explosão. Um choque de Universos, uma energia nova, um caos incontrolável, uma luz para nosso mundo. Uma luz para os necessitados da região. Uma luz para mim e uma luz para você.

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Written by Programador Sincero

Programador com vários anos de experiências.

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